Diariamente de manhã, quando ia para faculdade e pegava um certo ônibus que passava em determinada rua, via sempre próximo à um poste um senhor muito peculiar que chamava minha atenção. Era um morador de rua que em sua carroça cheia de entulhos, montado com um porte digno da nobreza inglesa, lançava ao poste uma corda que lhe servia muito bem como arreio para seu cavalo imaginário, que inclusive ao meu ver parecia sempre muito temperamental, pois era-se preciso sempre um carinho no pescoço do animal para acalmá-lo e quando não atendia aos mimos do dono uma maior força nos arreios para mostrar quem manda na situação era necessária. Sempre com sua pose distinta, com um ar satisfeito e com uma calma inabalável, eu o observava toda manhã esse senhor que apelidara então, muito adequadamente de Dom Quixote. Era sempre curioso vê-lo, alheio a tudo que ocorria em volta, os carros eram invisíveis, as pessoas, simples aldeãos, e se lhe ameaçassem oferecer ajuda ou dar esmola era uma ofensa imperdoável, sua calma e ar áspero de nobreza se desfaziam para uma fúria incontrolável, onde gritava coisas que ninguém nunca conseguia decifrar, gesticulando sempre exageradamente os braços de forma alheia e vazia.
Acompanhei Dom Quixote, todos os dias por pouco mais de um mês, como seu desatencioso e descuidado Sancho Pança, seguindo com minha vida é claro, porém toda manhã vestia meu poncho e o observava em seu delírio, e as vezes participando dele também, matutando na minha cabeça o que devia passar dentro da dele.
Porém depois de uns dias notei que Dom Quixote desapareceu. Não estavam mais lá sua carroça, seus entulhos, e seu cavalo se transformara tão somente em um poste sem graça e meio torto. Junto com sua presença desapareceu toda fantasia que seu delírio criara e me envolvia, aquele espaço tornou-se então um imenso buraco vazio, que parecia um cenário de um filme que não estreou. De repente me bateu um certo aperto no peito, uma agonia, uma melancolia. Fui tão distraída no decorrer do mês e do delírio de Dom Quixote, que não havia notado a gravidade da situação daquele senhor. Onde ele estaria agora? Morto em qualquer vala? Morreu de fome ou sede? Fora atropelado ao perseguir um malfeitor de donzelas? Perdido em uma outra qualquer rua que transformara em seu condado?
Não ter o controle da razão, viver em um mundo criado de fantasias e donzelas em perigo, algo que trazia tanta satisfação e alegria no seu semblante, revelava agora um ar triste, desconsolado e solitário.
Meu querido personagem me fez pensar um pouco mais na loucura e na razão. E dentro dos meus pensamentos, comecei a ver as faces que nós, seres cientes de nossa razão, criamos para o mundo, as personas de Freud. A senhora que vai a loja comprar roupas e põe pose de madame me parecia então uma pomposa mulher da nobreza feudal, os vendedores das lojas mostrando os produtos com simpatia e humor se revelavam artistas da corte, graciosos arlequins, o senhor que passara na rua com um ar cansado em direção ao trabalho tedioso e necessário era um aldeão cultivando sua lavoura. Todos de máscaras para um mundo de prédios ostensivos, aspereza, agressividade, onde não há espaço para fantasia, onde sempre precisamos fingir mais força e resistência com um sorrido forçado. Um mundo onde Deus é buscado por medo da solidão e da falta de um deus que lhe dê significado. Um mundo em que o amor ao próximo se torna cada vez mais ausente, o amor dentro da família é maculado, e o amor entre homem e mulher se torna cada vez mais vulgarizado em bocas indigentes de esperança, de fé.
Depois de perder Dom Quixote para o mundo, e desse dia que amanheceu nublado, tudo ao redor parece triste, estúpido e cinza. Será que existe um lugar além do arco-íris para todos nós?
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