Uma história do Gulag

  • on 30/03/2008
  • Texto de Marco Aurélio Antunes
    enconrado no blog Plural,
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    Pouco conhecida é a história de um dos maiores crimes contra a humanidade. O Gulag (acrônimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei – Administração Central dos Campos), foi uma rede de campos de trabalho forçado que se espalhava por toda a União Soviética. Cerca de dezoito milhões de pessoas passaram por esse sistema de trabalho escravo, tema do livro Gulag, de Anne Applebaum (São Paulo, Ediouro, 2004).

    Só recentemente foi possível o conhecimento mais aprofundado sobre a história do Gulag, o que em décadas passadas foi dificultado por escassez de fontes, arquivos fechados e proibição do acesso aos locais dos campos. Ademais, a propaganda soviética e a pressão sobre jornalistas e intelectuais do Ocidente mantiveram a atração dos ideais comunistas. Foram feitos esforços para esconder os crimes cometidos no sistema de trabalho escravo. É notável a escassez de imagens do stalinismo na cultura popular ocidental.

    O terror em massa já existia nos primeiros anos do regime comunista. Com o auxílio da polícia secreta, inicialmente chamada de Cheka, houve grande aumento do número de detenções após o golpe bolchevique, e muitos presos foram torturados ou fuzilados. A imoderação e o sectarismo de Lenin se manifestavam em sua visão dos campos de trabalhos forçados como forma especial de punição para certo tipo de “inimigo”.Em 1918, Lenin exigia o encarceramento de “inimigos do povo” em campos de concentração. Em 1921, já havia 84 campos.

    A partir de 1929, os campos passam a ser controlados pela polícia secreta soviética, e entram em rápida expansão com o impulso das prisões em massa. Stalin usaria o trabalho forçado para acelerar a industrialização e explorar os recursos naturais do extremo norte do país. Os campos tiveram papel crucial na economia soviética. Anne Applebaum cita algumas das diversas atividades nas quais os presos trabalhavam: derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões e peças de artilharia.

    Embora nazismo e comunismo estabelecessem categorias de “subumanos”, a definição de “inimigo” na União Soviética era muito mais vaga do que a de judeu na Alemanha nazista. Ainda que muitas pessoas tenham morrido no Gulag, o sistema soviético não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial. Na União Soviética, os presos eram tratados como gado, mas o propósito primordial do Gulag era econômico. Se é verdade que a forma específica de homicídio praticada no auge do Holocausto não teve equivalente na URSS, no Gulag os presos também morriam, como afirmou Applebaum, em geral graças não à eficiência dos captores, e sim à incompetência e à negligência crassas.

    Um dos primeiros campos de trabalho estava situado nas ilhas do Arquipélago de Solovetsky, no Mar Branco. Era um local isolado, no qual havia a necessidade de lutar contra as forças da natureza. Em relação ao tratamento dos presos, havia uma combinação de negligência criminosa com crueldade fortuita. As más condições de Solovetsky eram semelhantes às de outros campos: catastróficas condições de higiene, excesso de trabalho, alimentação ruim e doenças. Os presos eram divididos em três grupos: os capazes de trabalho pesado, os capazes de serviços leves e os inválidos, e eram alimentados segundo o trabalho produzido. A meta, não alcançada, era a de que os campos fossem auto-sustentáveis. Havia anistias periódicas para economizar dinheiro.

    O ano de 1929 é caracterizado como o da Grande Guinada, quando Stalin estabelece políticas que consagram o seu poder. É a época do programa de industrialização rápida, da coletivização da agricultura, da prisão, degredo e fuzilamento dos kulaks (camponeses prósperos, ou acusados de se opor às autoridades). Stalin acreditava nas vantagens da mão-de-obra prisional, e influenciou diretamente o desenvolvimento dos campos. Foram feitas detenções em massa, com o objetivo de eliminar inimigos e criar trabalhadores escravos.

    Stalin gostava de projetos grandiosos. Um deles foi o da construção do Canal do Mar Branco, realizada com pressa extrema e falta de planejamento. Foi o único projeto do Gulag que se expôs plenamente às luzes da propaganda soviética. Intelectuais produziam relatos fantasiosos sobre a construção do canal e o suposto poder reabilitativo dos campos. Presos trabalhavam em péssimas condições, num frio congelante e com falta de alimentos. E a rota de navegação do Mar Báltico ao Mar Branco não foi urgentemente necessária.

    Mais adiante, o sistema de trabalho prisional é implementado por todo o país, mesmo em regiões inóspitas como a de Kolyma, no extremo nordeste da Sibéria. Ainda hoje há locais em que estradas e prédios foram construídos por presos. Muitas vezes os presos eram levados para regiões selvagens e vazias. Ficavam em aldeias sem banhos, estradas, serviços postais e cabos telefônicos. As autoridades se interessavam pelas taxas de mortalidade de presos apenas quando estas eram suficientemente elevadas para afetar os índices de produtividade prisional.

    Os anos de 1937 e 1938 são lembrados como os do Grande Terror. Com a mania de prisões e execuções, a população fica aterrorizada e confusa. Pioram as condições de vida dos presos políticos, expressão que teria conotação negativa. Houve grande aumento do número de presos e queda da produtividade do sistema Gulag. A evidente produtividade inferior do trabalho de presos não impediu, no entanto, que houvesse aumento do número de campos.

    Com o início da Segunda Guerra Mundial, aumenta a repressão, e os presos políticos são proibidos de deixar os campos, nos quais havia epidemias e escassez de comida. Nos anos de guerra, mais de 2 milhões de pessoas morreram nos campos e mais de 10 mil foram executadas. Além disso, milhares de presos foram assassinados em cidades polonesas e bálticas. Nos campos soviéticos, houve evacuações em meio ao pânico da guerra. Presos fizeram longas marchas forçadas, e muitos não chegaram a seus destinos.

    Depois de 1939, aumenta o número de estrangeiros nos campos, os “estranhos”. Foi notável o efeito da deportação e da guerra sobre a demografia dos países bálticos, que tiveram suas populações reduzidas. Particularmente tocantes são as memórias das crianças sobre as deportações. Havia o interesse das autoridades de que fosse povoado o extremo norte do país. As minorias soviéticas tiveram destino cruel, uma vez que muitos indivíduos foram considerados “espiões”. Tártaros e chechenos foram deportados em trens lacrados, sem água e alimento.

    Pode-se falar em genocídio cultural, uma vez que embora esses povos não tenham sido totalmente dizimados, pois poderiam ser aproveitados para o trabalho escravo, foram submetidos a uma devastação cultural, com a tentativa de eliminar línguas e religiões. Na mesma época, também houve outros horrores: a prisão de civis nos países da Europa Central, os campos para prisioneiros de guerra e o massacre de Katyn, em que milhares de poloneses foram mortos pelos soviéticos.

    Após a conferência de Yalta, cidadãos soviéticos tiveram de voltar a seu país, mesmo contra a vontade. Mais de vinte mil cossacos foram repatriados por ordens de Churchill. Soldados britânicos colocaram milhares de mulheres e crianças que viviam na Áustria em trens com destino à URSS, onde os aguardavam a morte ou a escravidão no Gulag.

    No período após a guerra, milhares de prisioneiros foram soltos, embora os prisioneiros políticos e os criminosos de carreira não tivessem permissão para partir. O Gulag contribuiu para o esforço de guerra, já que boa parte da economia dependia dele. Aparecem, no entanto, francos relatos sobre o sistema soviético de trabalho escravo. Foi uma época em que também aumentou a influência soviética na Europa Central.

    Começa então a Guerra Fria, e com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki aumenta o interesse pela produção militar e industrial na União Soviética. A emergência de uma nova ameaça à URSS foi ao encontro dos propósitos de Stalin: o início dos anos 50 é o do apogeu do Gulag, quando o sistema teve o maior número de presos. Depois da morte de Stalin, em 1953, chega ao fim a era do Gulag. Embora ainda houvesse campos de trabalho e presos políticos, deixou de haver a exploração do trabalho escravo em grande escala.

    Cresce a inquietação entre os presos, que ficam galvanizados com a notícia da greve geral em Berlim Oriental, esmagada pelos tanques soviéticos. Presos entram em greve e começam a negociar com as autoridades, mas no final são brutalmente reprimidos. No entanto, mais adiante as autoridades perdem o apetite pelos campos. Fica evidente a falta de lucratividade deles. Aumenta o debate sobre a justiça stalinista e o grande número de pessoas inocentes presas e executadas naquela época.

    Krutchev ataca Stalin e o culto à personalidade, mas num discurso tendencioso, que ocultava a própria responsabilidade por crimes do passado. Acelera-se o processo de libertação e reabilitação e o Gulag é dissolvido, mas não houve mudança nos sistemas judicial e prisional. Muitos presos que eram libertados morriam na jornada de retorno. Estavam sem dinheiro, sem comida, com dificuldade para conseguir trabalho. O retorno dos veteranos dos campos era uma prova viva da violência. Nem sempre era fácil falar sobre os campos com amigos e familiares. Havia o medo da polícia secreta. E eram histórias tristes, que abalavam as pessoas.

    Ampliou-se o debate público sobre o stalinismo. Foi permitido o lançamento do livro Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Aleksandr Solzhenitsyn (Prêmio Nobel de Literatura de 1970), que passou pelos campos. O livro descreve a vida nos campos com uma franqueza perturbadora, em contraste com a ficção vazia e falsa do “realismo socialista”. Solzhenitsyn recebe muitas cartas, algumas de prisioneiros satisfeitos por encontrar na obra dele a descrição das próprias experiências nos campos. Mais adiante, no entanto, os conservadores do regime reagem e Solzhenitsyn sofre ataques severos. Ele é expulso do país e a publicação de seus livros é proibida.

    Depois do fim da era de trabalho escravo em massa na URSS, o regime tenta dar uma aparência de legalidade a seus atos. Escritores são julgados e condenados. Famoso foi o caso de Joseph Brodsky (Prêmio Nobel de Literatura de 1987), grande poeta e ensaísta, acusado de “parasitismo”. Foi considerado vadio por não ser poeta licenciado pelo Sindicato dos Escritores. Abandonou a escola aos quinze anos e teve uma série de empregos temporários. Protegido de Anna Akhmatova, seus poemas eram lidos em encontros literários secretos.

    Na página 591, Anne Applebaum cita respostas de Brodsky às perguntas de um juiz:
    - Qual é a sua profissão?

    - Sou poeta.

    - Quem o reconhece como poeta? Quem lhe deu autoridade para se intitular poeta?

    - Ninguém. Quem me deu autorização para fazer parte da raça humana?

    - Estudou para isso?

    - Para quê?

    - Para ser poeta. Por que não continua os estudos numa escola onde podem prepará-lo,onde pode aprender?

    - Não acho que se possa aprender poesia.

    - Como assim?

    - Acho que ela é um dom de Deus.

    Curioso é o fato de que o juiz declarou que Brodsky “não era poeta”. Alguns anos depois, ganharia o Nobel. Brodsky foi condenado a cinco anos de trabalho pesado numa colônia penal perto de Arkhangelsk, mas conseguiu uma vitória no sentido de que o seu desafio da lógica do sistema legal soviético e o registro desse desafio para a posteridade fizeram com que ele se tornasse um modelo a ser seguido por outros. Dois anos depois, Brodsky foi solto e posteriormente expulso da União Soviética.

    Surge o movimento soviético pelos direitos humanos. Algumas dessas pessoas protestavam em Moscou contra a invasão soviética da Tchecoslováquia, e logo foram reprimidas pela KGB. No entanto, a perseguição aos dissidentes é tratada em edições clandestinas (samizdat). Dessa forma também são divulgados trabalhos de autores como Aleksandr Solzhenitsyn, Varlam Shalamov e Evgeniya Ginzburg. A história do stalinismo e do Gulag estavam entre os temas da samizdat. E o Crônica dos acontecimentos atuais, jornal interno da samizdat soviética, tornou-se a principal fonte de informações sobre a vida nos campos soviéticos pós-stalinistas.

    O regime soviético passa a usar os hospitais psiquiátricos na tentativa de desqualificar os dissidentes, considerados loucos. A retratação era o objetivo. Entretanto, os horrores do abuso psiquiátrico chamaram a atenção internacional, gerando publicidade ruim para a União Soviética. Foram enviadas cartas de protesto para a Academia de Ciência Soviética, e houve manifestações de dissidentes famosos, como Aleksandr Solzhenitsyn e Andrei Sakharov.

    Em 1985, Gorbatchev foi nomeado secretário-geral do PCUS, e então se aceleram as mudanças que no final levaram ao desaparecimento da União Soviética. É verdade que esse não era o objetivo de Gorbatchev, mas a publicação de obras até então proibidas e as novas revelações dos arquivos soviéticos mostraram a força do passado oculto. Já não era possível sustentar o mito da grandeza soviética, e o governo perdeu legitimidade. No final de 1986, houve o perdão a todos os prisioneiros políticos do país. Os campos em que eles trabalhavam foram fechados. As antigas repúblicas se tornaram independentes.

    Embora tenha constatado a existência de discussão pública sobre o Gulag em ex-repúblicas e ex-estados satélites soviéticos, além de monumentos e homenagens aos mortos do Gulag na Rússia, Anne Applebaum afirma que esses esforços tem sido insuficientes e imperfeitos. Não há na Rússia um museu nacional dedicado à história da repressão nem investigação oficial sobre os campos de trabalho. Há um silêncio público, um medo de investigar o passado atentamente. Anne Applebaum diz que na Rússia para muitas pessoas o passado é um pesadelo a ser esquecido ou um boato a ser ignorado, não uma responsabilidade, uma obrigação.

    Além de ser escrito com clareza, o livro de Anne Applebaum não se limita a citar dados e estatísticas. Ao contrário, faz uma investigação sobre as vidas das pessoas. Ela fez entrevistas com sobreviventes do Gulag. Usou várias fontes no seu trabalho, enriquecido com uma excelente bibliografia para aqueles que pretendem fazer estudos mais aprofundados. É um trabalho notável de pesquisa, que nos conta histórias inesquecíveis sobre a vida no Gulag.

    Num simples artigo não há espaço para relatar todos os aspectos do Gulag, mas a citação dos títulos dos capítulos centrais, da parte chamada A vida e o trabalho nos campos, dá uma idéia dos temas tratados: a detenção, a cadeia, traslado, chegada e seleção, a vida nos campos, o trabalho nos campos, punição e recompensa, os guardas, os presos, as mulheres e as crianças, os moribundos, estratégias de sobrevivência e rebelião e fuga. São capítulos que descrevem fatos chocantes, atrocidades que nos fazem pensar sobre o lado sombrio da natureza humana.

    O escritor Milan Kundera afirmou que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Milhões de pessoas foram presas, escravizadas e mortas nos campos de trabalho da União Soviética. Fatos de tamanha relevância histórica não podem ser esquecidos pelas classes letradas. E não foram poucos os intelectuais que consideravam aquele país um modelo a ser seguido. As filosofias totalitaristas ainda têm um forte apelo. Lutar contra essas teorias, mostrar os fatos que, inspirados por elas, destruíram tantas vidas, é tarefa fundamental para a valorização da dignidade do ser humano.

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